DIÁRIO DE ENCRUZA
manuscritos

Os registros manuscritos reunidos no Diário de Encruza (ou Diário à Bordo) nasceram do desejo de marcar minha presença na vivência e, ao mesmo tempo, de me perceber em trânsito por ela. Escrever, nesse contexto, foi também um modo de escutar o terreiro e a mim mesma.
Esse exercício de observação e escrita, se tornou uma ferramenta para compreender o lugar da minha autoetnografia na pesquisa. Não apenas mero relato individual, mas como encruzilhada entre o vivido e o refletido, entre o corpo que participa e o pensamento que se elabora a partir da experiência.




18 de novembro de 2023
Gira de Malandros
Na noite de 18 de novembro de 2023, o terreiro se acendeu em festa para a 1ª Gira de Malandros do Terreiro de Pai Ogum. Era um sábado de muito calor, principalmente dentro do Congá. Foi nessa noite que cambonei pela primeira vez o espírito Zé Pelintra que trabalha com a irmã Valquíria.
Não é fácil descrever com precisão o que se vive quando o mundo material se mistura com o encantado, mas posso dizer: algo se abriu em mim naquela gira. Foi, sem dúvida, um dos atendimentos mais bonitos e sensíveis que vivenciei dentro do Terreiro.
Seu Zé dançava. Sambava em torno dos consulentes com elegância e riso largo. Ele girava, como quem sintoniza o corpo com a vibração da pessoa à sua frente, e quando parava (olho no olho) dizia exatamente o que precisava ser dito. Não era adivinhação barata, nem psicologia de improviso: era palavra-encantamento. Seu Zé costurava memórias alheias, entregava diagnósticos e receitava coragem.
A frase que ele disse para uma jovem que chorava muito ainda me atravessa: “A vida é muito curta para carregar tanto peso. É necessário o tempo do ócio, o tempo de amar, de sair, de rir e de comer com bons amigos.” Era um conselho simples, mas (nem de longe) banal. Em sua leveza, havia densidade.
Antes da gira acabar, Seu Zé me chamou e passou uma mandinga: “1 vela branca, 1 papel com meu nome, 1 copo com água (misturada com um pouco de açúcar).” Era um ritual cotidiano para manter a confiança viva.
Salve a malandragem!
15 de novembro de 2024
Juremação
Cheguei ao terreiro às 6h58 da manhã. O céu ainda estava azul claro, quase frio. Era dia de função da Jurema. Ainda não sou batizada, mas o Pai deixou que eu ajudasse. Só mais tarde descobri que o ritual se chamava “Juremação”, porque uma semente de Jurema Sagrada é literalmente plantada no corpo do médium, como um compromisso de enraizamento.
Deixei meus sapatos e bolsa no banco da assistência. A Brenda, que já varria o corredor. Pedi o que fazer e ela me direcionou ao banheiro dos filhos. Ia começar a limpeza para os banhos de ervas.
Enquanto eu limpava o chão, o ralo, o vaso, pensava em como tudo aqui é preparo (o espaço, o corpo, o tempo). Antes do ritual, os filhos passam pelo ebó: primeiro uma limpeza com elementos sagrados para “tirar o carrego” do corpo físico; depois, o banho de ervas (alecrim, manjericão, hortelã, alfazema e peregum). Tudo com propósito.
Terminei a limpeza e desci para a cozinha. Luciana já estava lá, segurando as rédeas do turno da manhã com precisão. A canjica já estava no fogo. Começamos os cortes dos legumes, sempre respeitando a medida dos dois dedos. Preparamos a pipoca de Obaluaê na areia da praia, as bolinhas de farinha com carvão no centro (aprendi que o carvão é como a “alma” da bolinha, seu ponto de absorção).
Separávamos folhas de mamona, velas, pólvora, búzios abertos… tudo isso passaria pelos corpos dos filhos em ritual. Cada coisa em seu tempo.
Enquanto os ritos se desenrolavam, seguíamos com as tarefas da cozinha: almoço, chás, vasilhas, chão. O almoço saiu: lentilha, arroz, inhame, frango. A comida ficou ótima, “cheia de axé”, como disseram. Mais louça, mais chá. Mais café.
Na parte da tarde, chegaram os galos. Confesso que já tinha batizado um de “Ricardino” e o outro de “Zezim”, até que me explicaram que nomear bicho de oferenda não é certo: humaniza e interfere no rito. Me arrependi rápido dos amigos que fiz, envergonhada.
Raquel chegou para cuidar do abate. Um dos galos desceu. Era a pele dura e velha de Ricardino contra a força dos punhos de Raquel, que mais parecia uma velha anciã, arrancando as vísceras, procurando pelas glândulas, puxando o coração.
Fez tudo com precisão cirúrgica. Os miúdos foram direto para o dendê: primeira comida a ser ofertada a Exu, como manda a tradição. Exu é princípio. É ele quem abre os caminhos. O padê foi preparado com farinha e dendê (tudo misturado no sentido horário) e pimentas. Foi colocado à entrada do terreiro, pedindo proteção.
Voltamos à limpeza. Biscoito de polvilho, mais café. Os juremeiros estavam em recolhimento, deitados nas esteiras, em silêncio. Não podiam sair do Congá, só para necessidades básicas.
À noite, o jantar: arroz, purê e peixe. O tempero? Sempre suave. Mãe Fernanda explicou que excesso de sal ou açúcar interfere na percepção espiritual. Fiz o suco de laranja, coado com paciência. Todos comeram. Mais vasilhas. Mais chão. Mais chá.
Saí do terreiro às 19h40. O corpo estava exausto, mas a alma estranhamente leve. Tem algo de sagrado em um dia atravessado pelo cansaço que vale a pena. E naquele dia, valeu.
Salve a Jurema Sagrada!
"Ponto da Pombogira Cacurucaia
Rainha
e moradora da Calunga
Senhora
Mestra da Quimbanda
Mas é senhora
Mestra da Quimbanda
Amarra meus inimigos na ponta do cipó
Mas não brinque com ela
Ela não tem pena
Ela não tem dó
Ela não tem falha
Ela não dá falha
Não existe inimigo invencível que não caia
Ela não falha
Não ela não comete falhas
Não existe inimigo na mão dela que não caia
Senhora Cacurucaia
Cacurucaia do Inferno
Senhora Cacurucaia
Cacurucaia do Inferno
Com 7 velas te levanto
1 vela só te enterro
Senhora Cacurucaia
Cacurucaia do Inferno
Senhora Cacurucaia
Cacurucaia do Inferno
Com 7 velas te levanto
1 vela só te enterro
Laroyê Exu
Manda aqui, Exu Mulher!"
26 de novembro de 2024
Gira de Exu e Pombagira
Decidi voltar a escrever. Faz alguns meses desde que comecei a cambonar Mãe Rosi, e os dias de gira têm deixado marcas que não cabem só na pele. Hoje foi gira de Exu e Pombagira. Cheguei cedo, como sempre, para ajudar nas tarefas da casa, mas confesso: meu corpo e minha cabeça estavam pesados. Vinha me perguntando o que exatamente eu estava fazendo aqui dentro do terreiro e como tudo isso ecoa dentro de mim.
Cambonei o Sr. Exu Capa Preta. E foi como sentar diante de um velho sábio vestindo sombras e ironia, com olhos que enxergam além da pergunta. Cada atendimento era um corte fino: ele falava da aprendizagem como quem fala de um oráculo. E, embora se dirigisse aos consulentes, suas palavras me atravessavam:
“Todos estão aprendendo. Não há ninguém melhor ou pior que não possa aprender. E, por isso, não podemos deixar que o ego nos impeça de aprender, com quem quer que seja, aonde quer que seja.
Todos temos o que ensinar e o que ouvir.”
Enquanto ele dizia, as frases se alojavam em mim como espinhos. Doíam bonito. Em determinado momento, ele atendeu uma moça (jovem, talvez da minha idade) e eu chorei. Não por ela, mas por mim. Chorei quieto, de canto. E ele me viu. Não disse nada. Apenas acenou com a cabeça, como quem confirma: “é isso mesmo, menina, deixa passar”.
No fim da gira, Seu Capa me chamou de lado. O terreiro já estava mais vazio, mas ele ainda estava correndo gira. Se aproximou devagar, me encarou com firmeza e disse:
“Lembre-se, menina: uma vela se acende a Deus… e outra se acende ao Diabo (Exu).”
E então, soou aquela gargalhada… que não cabia no espaço físico do Congá.
Voltei pra casa com o corpo exausto, mas aceso. Talvez isso seja aprender. Me deixar atravessar pelo que a gira revela (mesmo quando não entendo tudo). Sigo tentando ouvir, com menos pressa, com mais chão.
Laroyê, Exu!
12 de fevereiro de 2025
Gira de Pretos Velhos
Cheguei pouco antes das 19h30, quando a Jurema de chão ia começar. Corri para pegar os objetos de Vó Maria Conga: caneca, água com boldo, cachimbos, pemba, alguidar…
Os cachimbos da Mãe Rosi estavam vazios e tive que enchê-los rápido. Quando ela tentou acender, o fumo não carburou. Se aproximou de mim e disse, quase num sussurro: “antes de pôr o fumo, você precisa conferir se o cachimbo está entupido”. Mais uma lição. Limpei, refiz, entreguei de novo. Deu certo.
Logo depois, Vó Maria Conga baixou. Minha madrinha espiritual. Antes mesmo de cambonar Mãe Rosi, já tinha escolhido ela. Vovó caminhou pelo salão com a bengala, devagar, mas firme. Abençoou uma a uma as firmezas do chão. Sentou no banquinho, cobriu o colo com seu pano branco, acendeu o cachimbo com vela (nunca isqueiro). As entidade da Mãe preferem sempre acender seus fumos com velas.
Pediu folhas para benzer. Já sabia que ela ia querer boldo. Peguei do vaso, perguntei se era suficiente. Ela apenas acenou com a cabeça e fechou os olhos. Vó responde com o silêncio e com o gesto. É uma senhora calma, mas com uma presença que preenche tudo.
Em dado momento, me chamou e disse que era preciso trazer capoeira para o terreiro. Que a capoeira é força do povo preto. “Ingênuo quem acha que a escravidão acabou, minha filha. Tem menino preto sendo chicoteado todo dia, só que agora com outras mãos.” Suas palavras vinham devagar, mas cortavam. Puxou um ponto:
Se negro soubesse a força que tem
Não aceitava ser escravo de ninguém
Fui até a curimba. Ninguém conhecia. Voltei, pedi que ela cantasse o ritmo. Ela respondeu: “cada um canta de um jeito. Vou ensinar do meu.” E assim aprendi mais uma vez: no terreiro, o saber vem pela escuta, pelo canto, pelo corpo. Não tem apostila. Tem vivência.
Cantamos. Vó continuou o atendimento. Passou mirongas, deu conselhos.
Banho de canjica da cabeça aos pés (para purificar a energia do Ori):
“canjica branca, importante que seja branca”.
Ferver a água, colocar a canjica, deixar esfriar. Jogar na cabeça.
Depois, com areia branca da praia, estourar pipoca.
Depois de estourar, pegar vela, acender, pegar a pipoca, colocar em uma cumbuca clara, ao lado, um copo de água.
Deixe a vela queimar.
Quando não houver mais vela, jogar a água fora em uma planta.
Vovó não disse, mas penso que depois desse banho de purificação, é preciso vestir roupas claras. a energia das cores é importante durante rituais.
No fim dos atendimentos, vovó perguntou se eu estava “boazinha”. E como estava! Conversamos um pouco, então ela subiu. Os trabalhos foram encerrados e todos voltamos para casa. Mais um dia finalizado com escuta.
Adorei as almas!









