top of page


URBANISMO DE 
ENCRUZA

 

O que inauguro neste trabalho como urbanismo de encruza não nasceu de uma teoria para impressionar. É algo que me atravessa por dentro. É chão vivido! Não surgiu somente do curso de arquitetura, nem dos discursos acadêmicos bem diagramados. Veio, sobretudo, do que aprendi caminhando pelos desvios da cidade real, onde o asfalto some e o barro insiste, onde o quintal vira roçado e a cozinha de santo ferve tempo, memória e alimento na mesma panela.

Foi aqui, entre o cheiro da folha e o barulho da colher batendo no fundo da panela, que compreendi que espaço não serve apenas à função: ele sustenta o rito. Sustenta a vida e suas formas diversas e inclassificáveis.

A cozinha de santo, mais do que inspiração, é o fundamento desse conceito que proponho. Ela é a que melhor encarna o que chamo de urbanismo de encruza. Porque aqui, tudo se mistura sem pedir licença à funcionalidade: feitiço, semente, conversa baixa, fofocas, cantigas/pontos, corpo, planta, reza e política. Não há separação entre técnica e afeto, entre tempo e espera, entre fazer e pensar. Como diz Luiz Rufino, “o conhecimento é também uma forma de feitiçaria” e é disso que se trata: reconhecer que cidade também se cozinha, também se canta, também se gira.

A cozinha de santo não é metáfora, é estrutura viva. É urbanismo ancestral, insurgente e comunitário. É uma centralidade que não aparece nos manuais de arquitetura, mas que organiza o território à sua volta. Nela, o mundo se atualiza a cada alimento preparado com axé, a cada saber passado de corpo para corpo. É uma cidade em miniatura, não porque reduz, mas porque condensa: camadas de tempo, de gente, de história. Um espaço que não se explica com planta baixa, mas se compreende com o corpo, com o cheiro, com o tempo espiralar.

Nesse modo de habitar e produzir espaço, a encruzilhada não é desorganização: é método de quem nunca teve o privilégio da linha reta. É o lugar onde se cruzam o que a cidade oficial tentou separar: corpo e espírito, sagrado e cotidiano, saber e fazer. E foi exatamente isso que o urbanismo moderno, racional e utilitarista, foi desenhado para apagar.

Jane Jacobs já dizia: “as cidades têm a capacidade de proporcionar algo para todos, só porque, e somente porque, foram criadas por todos”. Mas o urbanismo moderno virou as costas para isso. Quis ordenar a cidade como se ordena um gráfico: zonas de dormir, de circular, de consumir. Deixou de lado o improviso, a vizinhança, o quintal, o gesto. A arquitetura que se impôs após a Segunda Guerra Mundial não nasceu para escutar (nasceu para controlar). Veio com a promessa de reconstrução, mas limpando o que cheirava a ancestralidade, a espiritualidade encarnada, a modos de vida não conformes.

A arquiteta, Priscila Mesquita Musa, é precisa em sua tese de doutorado quando diz que o projeto moderno não apenas excluiu corpos, mas negou existências inteiras. Como ela mostra em sua tese de doutorado, “Quem vê cara não vê ancestralidade”, essa arquitetura criou uma política do olhar que “racializa” a paisagem: tudo que carrega signos de territorialidades negras e indígenas (materialidades, formas e usos) passa a ser lido como informal, inadequado e, consequentemente, problema urbano. Não porque falta técnica, mas porque falta branquitude.

 

A cozinha de santo, por exemplo, não é reconhecida como infraestrutura urbana. Mas é ela que garante sustento, cuidado e cura. É ela que ensina o tempo, que sustenta o coletivo, que formula outra cidade (desde baixo, desde dentro).

Milton Santos já advertia: “a técnica, quando descolada da vida, se transforma em instrumento de dominação”. A cidade-máquina herdada de Le Corbusier não foi feita para escutar: foi feita para operar. Mas o que ela chama de operação, eu chamo de silenciamento.

 

Onde estão as cozinheiras de axé nos planos diretores? Onde cabe o tempo da folha que descansa na água antes de virar banho? Onde entra o tempo do preparo que não cabe em cronograma?


A cidade que desejo tem cheiro de comida, som de ponto cantado, ritmo de tambor. Nela, a cozinha não fica nos fundos, ela é o centro, como parte de uma reorganização radical. Porque é aqui que se aprende a complexidade da convivência, o valor da lentidão, a sabedoria de quem sabe esperar o feijão cozinhar enquanto reza/canta. E é por isso que a panela, nesse caso, vale mais que qualquer AutoCAD.


Projetar a partir da cozinha de santo não é só gesto simbólico. É ruptura. É recusar o traço universal. É admitir que o saber técnico é histórico, situado e colonial. E que, muitas vezes, é ele quem projeta o apagamento. A gira ensina outra coisa: que o mundo se sustenta no entre, no atravessamento, na contradição. E é exatamente aí que Exu se move.


Projetar a partir desse lugar (transgressor e transgredido) exige abandonar a fantasia do arquiteto como gênio criador. Exige parar de “dar voz” a quem nunca deixou de falar. Saber não mora só na prancheta: mora no pilão, na roda, no cheiro do feijão com folha de louro. O arquiteto, se quiser andar com dignidade, precisa aceitar ser mais um corpo na roda. E como diz Vovó Maria Conga (líder espiritual do Terreiro de Pai Ogum), “é preciso apagar o farol e andar com o candeeiro”.


É por isso que precisamos manter Exu vivo nessa conversa. Porque Exu não traça avenidas, ele desafia mapas. Ele embaralha os sentidos. Ele propõe dúvidas onde antes havia certezas. E a dúvida, nesse caso, é caminho. É a própria travessia.

"A encruzilhada é o principal conceito assente nas potências do orixá Exu, que transgride os limites de um mundo balizado em dicotomias. A tara por uma composição binária, que ordena toda e qualquer forma de existência, não dá conta da problemática dos seres partidos no entre. A existência pendular, a condição vacilante do ser, é, a princípio, o efeito daquilo que se expressa a partir do fenômeno do cruzo. Assim, ato a provocação: aquilo que a agenda colonial buscou produzir como um sistema de controle da vida, a partir de uma ordem pautada nos binarismos, acarretando a redução das complexidades, é fragilmente salientada por uma leitura a partir da gramática poética das encruzilhadas. 


Luiz Rufino

Então sim, o urbanismo de encruza é radical. Não porque propõe ajustes, mas porque propõe outro centro. Um centro onde não há régua, nem escala padrão. Onde o espaço se faz com corpo, com comida, com axé. E isso, pra mim, é o que basta para começar a pensar uma cidade, de fato, inclusiva.

bottom of page