CASA DE PAI OGUM E SEARA DO MESTRE SIBAMBA
Em contracorrente à homogeneização cultural impulsionada pelas elites de Belo Horizonte, o espaço sagrado que ancora esta pesquisa foi fundado em 1949, nas terras então pouco valorizadas do bairro Padre Eustáquio, em um antigo galinheiro convertido em terreiro. Sob a liderança de Mãe Glória, o então Centro Espírita Caboclo Rompe Mato deu início a uma trajetória que expressa não apenas resistência religiosa, mas o protagonismo de uma comunidade que resiste há mais de 70 anos.
A mudança para o bairro Dom Bosco ocorreu em 1969, após quase uma década de edificação contínua do novo espaço. Consultas ao Acervo Cartográfico e Geográfico da Prefeitura de Belo Horizonte revelam que, à época, a urbanização do entorno era incipiente: o decreto de averbação dos lotes, Decreto n° 2.671, só foi publicado em dezembro de 1974, cinco anos após a instalação da Casa.
Tal fato evidencia o papel estruturante do Terreiro, que não apenas antecedeu a formalização do bairro, mas também contribuiu ativamente para a organização urbana e social de sua vizinhança.
Em plena ditadura militar, período marcado por repressão à liberdade religiosa e cultural, o, até então, Centro Espírita Caboclo Rompe Mato emergiu como território de expressão e manutenção de práticas afro-indígenas.
A cozinha, nesse contexto, se afirmou como núcleo político: o alimento ritual, longe de ser um detalhe, sustenta a liturgia, a coletividade e os vínculos espirituais da comunidade. Durante seis décadas, Mãe Glória conduziu a Casa com firmeza e generosidade, promovendo a Umbanda e reunindo filhos e frequentadores oriundos de diversas regiões da cidade e da região metropolitana.
Com seu falecimento, em 2021, um novo ciclo se iniciou sob a liderança de Pai William Briza (iniciado na Jurema Sagrada) e Mãe Rosi (feita no Omolokô). A diversidade litúrgica trazida por ambos os dirigentes fortalece a pluralidade da Casa e se expressa, sobretudo, nos ritos e nas partilhas realizadas na cozinha-território dessa comunidade.
ACERVO pessoal de fotos de
Mãe Glória
ACERVO pessoal
HOJE, o Terreiro sustenta dois rituais regulares: os cultos de Umbanda, aos sábados, e os trabalhos de Jurema Sagrada, às quartas-feiras. Em 2024, mais de oito mil pessoas passaram pela Casa, o que a consolida como pólo espiritual e sócio-territorial.
Além da dimensão litúrgica, a Casa atua na promoção da segurança alimentar, distribuindo aproximadamente 600 refeições mensais, todas preparadas em sua própria cozinha e servidas a frequentadores e pessoas em situação de vulnerabilidade, sem apoio financeiro externo.
A Casa de Pai Ogum e Seara do Mestre Sibamba reafirma sua vocação pública, democrática e plural. É um espaço aberto a todos os corpos e credos, firmando-se como lugar de diálogo intercultural e de fortalecimento de laços comunitários.
No campo da formação de saberes, promove debates, oficinas e cursos sobre as tradições afro indígenas, democratizando o acesso ao conhecimento litúrgico.
Seu alcance extrapola os muros do terreiro. A Casa participa ativamente da RUM - Reunião Umbandista Mineira e dos eventos que celebram e reivindicam a presença negra e indígena na cidade:
- A Pisada de Caboclo, no Parque das Mangabeiras;
- A Noite de Libertação, na Praça 13 de Maio, evento reconhecido como patrimônio imaterial de BH;
- A Festa de Iemanjá, às margens da Lagoa da Pampulha;
- O 8M, manifestação feminista na Praça Sete/Centro.
Além disso, realiza ações próprias como a Homenagem aos Finados no Cemitério do Bonfim. Em 2024, distribuiu 700 rosas brancas em túmulos depredados, resgatando o valor espiritual e simbólico desses espaços e promovendo o direito à diversidade de manifestação religiosa.
Todas essas ações reforçam a centralidade do Terreiro como território cultural, político e espiritual. Com mais de 110 filhos/médiuns ativos, a Casa se conecta organicamente à cidade (em seus corpos, seus saberes e suas lutas).
A cozinha, o altar e a rua se fundem num mesmo chão, de onde brotam práticas de resistência e mundos diversos.
Mais do que um lugar sagrado, a Casa de Pai Ogum e Seara do Mestre Sibamba é um espaço de produção de conhecimento, de práticas de cuidado, de cultivo da memória e de reinvenção cotidiana da presença afro-indígena na cidade.
Em 2010, Pai William iniciou sua caminhada na Jurema Sagrada, tradição ancestral que entrelaça raízes afro-brasileiras e indígenas, florescendo no chão da memória, da oralidade e do encantamento. Seu primeiro contato com os ritos da Jurema Sagrada foi marcado por escuta e reverência: orientado por seus mais velhos, aprendeu que vivenciar a espiritualidade exige corpo presente, silêncio atento e respeito aos processos iniciáticos.
Sua jornada espiritual começou em Atibaia, no interior de São Paulo. Ali, mergulhou nas rotinas de terreiro, tocando atabaque, participando da corrente mediúnica e se aproximando das práticas da Umbanda. Essa vivência plural não apenas o formou tecnicamente, mas o sensibilizou para a multiplicidade dos caminhos espirituais, ampliando sua escuta e sua conexão com o sagrado.
Com o passar do tempo, os ventos da Jurema o levaram a João Pessoa, na Paraíba, terra de sua família espiritual. Foi ali, no calor dos terreiros e nos saberes transmitidos de boca a ouvido, que Pai William consolidou sua aliança com a tradição. Os rituais, as rezas e as práticas iniciáticas fortaleceram sua raiz, confirmando seu lugar como zelador de encantarias.
Em 2019, fincou sua jurema em solo mineiro. Em Belo Horizonte, deu início à Seara do Mestre Sibamba, espaço onde a tradição pulsa em cantos, folhas, histórias e corpo em gira. Mais do que conduzir rituais, Pai William abriu caminhos de formação, partilha e memória, transmitindo os fundamentos da Jurema Sagrada com delicadeza e firmeza, cuidando para que cada ensinamento se faça ponte entre o passado e o porvir.
Seu compromisso não se limita ao terreiro: ele entende a Jurema como território político e cultural, e faz de cada roda uma oportunidade de reafirmar a presença afro-indígena nos caminhos do Brasil. Ao lado de sua companheira, Mãe Rosi ( iniciada na tradição do Omolokô), dirige a Casa de Pai Ogum, situada no Bairro Dom Bosco, onde espiritualidade e ação comunitária caminham lado a lado.


























































