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A tradição alimentar brasileira é profundamente marcada pelas matrizes afro-indígenas que estruturam os modos de vida, de rezar e de cozinhar em centenas de Terreiros espalhados pelo território nacional. Entretanto, essas práticas têm sido historicamente marginalizadas das políticas de reconhecimento e preservação do patrimônio cultural. A cozinha de santo, em especial, permanece em grande parte fora dos registros oficiais do IPHAN, apesar de sua centralidade na organização simbólica, espiritual e política dos Terreiros. 


Escolho mobilizar aqui a expressão "racismo patrimonial" como uma chave crítica para entender o funcionamento seletivo das políticas de proteção cultural no Brasil. Trata-se de um mecanismo que não opera apenas por omissão, mas também por enquadramento: o Estado decide não só o que proteger, mas como proteger, e com isso impõe categorias e formatos que, muitas vezes, mutilam as práticas vivas que buscam salvaguardar. George Abungu, arqueólogo queniano, alerta que:

 

o patrimonialismo de Estado, mesmo sob roupagens democráticas, tende a replicar lógicas coloniais ao impor às comunidades narrativas e critérios que são alheios às suas próprias cosmologias.”


COZINHA DE SANTO:
patrimônio (i)material

 

Nesse sentido, o racismo patrimonial é também uma extensão do projeto ontológico da escravidão, que buscou reduzir corpos negros à condição de coisas. A cultura negra, uma vez criminalizada e empurrada para as margens, passou a ser tolerada apenas quando estetizada, folclorizada ou esvaziada de sua densidade espiritual e política. A cozinha de santo desafia essa lógica. Ela não se encaixa no modelo de patrimônio como "coisa" a ser preservada, porque é relação viva, é corpo em movimento, é gesto atravessado por ancestralidade.
 

Com a proclamação da República e o advento de uma política cultural baseada na unidade nacional, iniciou-se o que a arquiteta e pesquisadora Priscila Musa nomeia como "branqueamento simbólico do espaço": uma opção por formas arquitetônicas, religiosas e estéticas europeias como expressão do que seria o "autêntico brasileiro". Ao mesmo tempo, saberes afro-brasileiros passaram a ser relegados ao campo do folclore ou ignorados.

 

Esse movimento foi consolidado pela criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - SPHAN, em 1937, que, apesar de avançado para seu tempo, instituiu uma política patrimonial centrada na monumentalidade barroca e na arte sacra católica, mantendo as expressões culturais negras às margens, por não se adequarem a esse modelo de beleza e valor histórico (opressor).

Durante o século XX, mesmo com a ampliação conceitual promovida pelo IPHAN, a inclusão de bens afro-brasileiros no rol de patrimônios protegidos continuou sendo exceção. Quando reconhecidos, esses bens são frequentemente estetizados e despolitizados, como no caso do samba, do maracatu ou da capoeira, cuja força ancestral e de resistência é substituída por uma imagem espetacularizada e desvinculada de sua origem comunitária e espiritual.


O racismo patrimonial é mais do que uma ausência de reconhecimento: é uma estratégia ativa de controle simbólico. Ao decidir o que é digno de proteção, o Estado define também o que deve ser esquecido, marginalizado ou transformado em produto. A cultura negra, quando entra no circuito patrimonial, é frequentemente despolitizada, desritualizada e recortada de forma a não confrontar as narrativas dominantes.


Esse mecanismo serve a uma economia da memória onde a cultura negra é celebrada apenas quando decorativa, nunca quando reivindica direito, terra ou espiritualidade. O resultado é um Brasil que se declara plural e mestiço, mas que ergue seus monumentos sobre alicerces coloniais e silencia os tambores e as panelas de seus povos fundadores.

A legislação brasileira de patrimônio cultural, ainda que formalmente inclusiva e ampliada a partir do Decreto nº 3.551/2000, carrega as marcas históricas do eurocentrismo e da colonialidade do saber. Bens afro-brasileiros só costumam ser registrados quando filtrados por uma estética aceita, esvaziados de suas dimensões espirituais e políticas. O caso paradigmático do registro do ofício das baianas do acarajé revela a dualidade: reconhece-se o alimento enquanto ofício, mas não se garante a proteção dos fundamentos litúrgicos que dão sentido àquele fazer. A espiritualidade, parte fundamental da cozinha de santo, é sistematicamente deixada de fora.


Esse processo revela um desejo estatal de domesticação simbólica da cultura afro-brasileira: tolera-se o prato, mas não o Orixá; celebra-se o tempero, mas não o Axé.

A patrimonialização, nesse contexto, funciona muitas vezes como uma política de museificação dos corpos e saberes negros, transformando práticas vivas em vitrines folclóricas ou produtos turísticos. Esse esvaziamento opera como nova camada do racismo estrutural: a que celebra a cultura negra como espetáculo, mas nega seus direitos, territórios e espiritualidades.


Além disso, há uma desproporcionalidade evidente na representação das práticas afro-brasileiras nos registros do IPHAN, o que não é fruto do acaso, mas da ausência de instrumentos adequados de escuta e coautoria na formulação das políticas de salvaguarda. A invisibilização não é acidental: é estrutural. Como consequência, as comunidades são pressionadas a performar uma versão aceitável de si mesmas para obter reconhecimento, o que gera distorções profundas nas formas de transmissão cultural.

Combater o racismo patrimonial exige muito mais do que ampliar o número de registros. É necessário transformar os próprios critérios e procedimentos de patrimonialização: garantir a escuta comunitária, respeitar a oralidade como fonte legítima de saber, reconhecer a espiritualidade como fundamento do bem cultural e criar mecanismos que garantam a continuidade viva das práticas (não sua cristalização decorativa).
 

A cozinha de santo, como território de saberes, corpos, memórias e axés, desafia as noções clássicas de patrimônio. Para que ela seja efetivamente reconhecida, é preciso que o conceito de patrimônio cultural no Brasil seja reconfigurado: não como um inventário de coisas, mas como um pacto vivo com formas plurais de existência. Embora o IPHAN tenha reconhecido o ofício das baianas do acarajé, a maioria das práticas culinárias de matriz afro-brasileira segue invisibilizada nos instrumentos de proteção. Priscila Musa adverte que esse reconhecimento parcial muitas vezes transforma a prática em objeto de consumo cultural, ao mesmo tempo em que neutraliza sua força ancestral. A cozinha de santo, por envolver o sagrado, a terra, o fogo e a ancestralidade, escapa à estetização normativa e aponta para outra política do sensível.


Esse capítulo propõe que a salvaguarda dessas práticas não se limite à esfera jurídica ou institucional, mas seja feita pelo fortalecimento das condições de existência dos terreiros: acesso ao território, proteção das matas, combate ao racismo religioso e garantia de autonomia espiritual e alimentar. Uma política de salvaguarda verdadeiramente justa deve reconhecer que o patrimônio imaterial das cozinhas de santo é inseparável da terra, da espiritualidade, da oralidade e da performatividade. Em vez de buscar fixar receitas, é preciso proteger relações. Em vez de registrar produtos, é preciso salvaguardar os modos de fazer, de rezar, de partilhar.

Nesse sentido, os estudos de Maria Inês Lacerda são fundamentais, pois deslocam o olhar patrimonial do objeto para o processo, do bem isolado para os fluxos de vida que o sustentam. Ao trabalhar com comunidades quilombolas e de tradição oral, Lacerda demonstra que a lógica relacional dos bens culturais exige um Estado aliado, e não curador. O patrimônio imaterial, afirma ela, não deve ser preservado nos moldes coloniais, mas vivido e reinventado em sua complexidade comunitária, exigindo políticas participativas, coautorias e escuta ativa.


Superar o racismo patrimonial, portanto, exige mais do que boa vontade institucional: exige reconfigurar as estruturas do saber. Implica reconhecer a oralidade, o corpo, a encruzilhada, o quilombo e o terreiro como arquivos legítimos de memória e criação cultural. Musa e Lacerda convergem ao apontar que a justiça patrimonial precisa ser relacional, viva e descentralizada.  Tecida com os sujeitos, não sobre eles.


Lacerda insiste que o patrimônio não é apenas aquilo que se pode documentar, mas o que pulsa no território, nos fazeres, nos gestos, nas relações. Essa compreensão dialoga diretamente com Nego Bispo, que afirma que o território é um corpo. A luta por salvaguarda, nesse caso, é também uma luta por chão, por possibilidade de continuidade ontológica.

Quando rejeitamos a separação entre cultura e território, entendemos que não há como proteger o patrimônio imaterial afro-brasileiro sem garantir a autonomia territorial e ecológica dessas comunidades.

O pensamento de Escobar, ao propor uma política do pluriverso, amplia essa crítica. Ele aponta que a modernidade impôs uma ontologia dualista que separa sujeito e objeto, razão e espiritualidade, técnica e cosmologia. Essa lógica opera também nas políticas patrimoniais, que se esforçam para enquadrar manifestações culturais em categorias modernas que lhes são alheias. Escobar propõe outra abordagem: desenhar mundos com base nos modos de vida e nas cosmologias das comunidades. No campo patrimonial, isso significa reconhecer que práticas como a cozinha de santo não são "manifestações culturais", mas formas de mundo. 


Aplicando essa abordagem, Escobar nos convida a imaginar futuros construídos a partir da encruzilhada, do cuidado, do território e da diferença. A autonomia comunitária, a justiça ambiental e a diversidade ontológica não são obstáculos: são fundamentos para mundos sustentáveis. Essa imaginação pós-colonial do patrimônio exige, que os instrumentos de reconhecimento estejam dispostos a escutar outras epistemologias.


A literatura negra de tradição oral oferece uma chave crítica e poética para compreender a exclusão dessas espiritualidades encarnadas das políticas patrimoniais. O romance Cachorro Velho, da escritora afro-cubana Teresa Cárdenas, encarna essa resistência. Pela voz silenciada de um homem escravizado e idoso, a obra nos conduz por uma cosmovisão negra em que a memória se transmite por gestos, silêncios, visões — onde o corpo é arquivo e a palavra é feitiço. “O velho não temia o inferno: tinha vivido nele desde sempre”, escreve Cárdenas. O inferno, aqui, não é metáfora teológica: é a continuidade colonial.

Como na cozinha de santo, a espiritualidade em Cachorro Velho não se isola da vida cotidiana: ela está nas plantas, nas conversas, nos sonhos e nos cheiros. No entanto, esse tipo de espiritualidade relacional, oral e encarnada segue sendo ignorada pelos sistemas patrimoniais que privilegiam o que pode ser documentado, estetizado ou mercantilizado. O que essa obra denuncia, e o que Musa, Lacerda e Escobar ajudam a compreender, é que o racismo patrimonial não se manifesta apenas na omissão, mas também na recusa ativa de reconhecer outros modos de saber, sentir e contar o mundo.
 

Incorporar essas vozes ao debate sobre patrimônio é afirmar que o axé, o gesto, o canto e o tempo espiralar também são arquivos. Salvaguardar a cozinha de santo é, portanto, mais do que preservar um saber: é garantir que um mundo continue sendo vivido. É gesto de futuro, de reparação, de insubmissão diante do esquecimento. Essas reflexões nos conduzem a uma pergunta fundamental: se a cozinha de santo, com toda sua densidade espiritual, cosmológica e ancestral, ainda não foi reconhecida como patrimônio cultural imaterial no Brasil, o que isso diz sobre os critérios que estruturam tal reconhecimento?

 

A resposta não está na ausência de critérios, mas na permanência de filtros racistas, que ainda definem o que merece ser lembrado e o que pode seguir sendo apagado.
Enquanto aqui seguimos tratando práticas afro-brasileiras como folclore tolerado ou resíduo do passado, diversos países já reconhecem que tradição, território e comida caminham juntos e são inseparáveis do direito à cultura.

 

No México, a cozinha tradicional foi registrada não só pelos pratos, mas pelos rituais, sistemas agrícolas e formas comunitárias de transmissão. No Japão, o washoku e o saquê foram incluídos como expressões de uma relação ética com o tempo, a natureza e o sagrado.
A Coreia do Sul protege o Kimjang como prática de partilha e ancestralidade. A França elevou a refeição gastronômica à condição de bem cultural por seu valor social. A Ucrânia inscreveu o borscht como patrimônio em risco, diante da guerra. São exemplos que mostram que não é preciso separar fé de comida, nem apagar espiritualidade para validar cultura.

O que esses países fizeram foi afirmar que comida e as práticas alimentares carregam símbolos e territórios, assim como seus saberes e suas histórias coletivas .

Aqui, seguimos aceitando o prato, mas recusando seus signos. Toleramos o acarajé enquanto “ofício”, mas ignoramos o fundamento ritual que o sustenta. Assim, perpetua-se um modelo de patrimônio que estetiza, mas não escuta; que expõe, mas não respeita.


Como alerta George Abungu, não basta reconhecer práticas culturais, é preciso mudar quem tem o poder de nomeá-las. E como afirma Priscila Musa, enquanto a ancestralidade negra continuar sendo tratada como ruído pela arquitetura e pelo urbanismo hegemônicos, não haverá reparação, apenas rearranjo da exclusão.


Por isso, mais do que perguntar se a cozinha de santo pode ser reconhecida como patrimônio, o que devemos perguntar é: o que revela a recusa sistemática em protegê-la? Que formas de vida seguem sendo consideradas indignas de memória? Que modos de saber continuam interditados nos protocolos de valorização cultural?


O que está em disputa não é apenas um reconhecimento simbólico. É o direito de existir a partir de outras ontologias, de outros ritmos e sentidos do mundo. Reconhecer a cozinha de santo é reconhecer que há saberes que não cabem na ficha técnica, e é justamente por isso que devem ser protegidos.

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