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FEIJOADA DE OGUM
expressão do cotidiano brasileiro

 

 

Ô Ogum 
Ô Ogunhê, iê, iê
Ô Ogum 
Ogum Xoroquê 

Ô Ogum 
Ô Ogunhê, iê, iê
Ô Ogum 
Ogum Xoroquê 

Meu senhor das estradas, 
Ogunhê 
Abra meus caminhos,
Ogunhê 
Meu senhor da porteira,
Ogunhê
Ele é meu pai, Ogum Xoroquê 

Imagens capitadas pelo irmão de santo
(e fotógrafo) Augusto Sérgio.
Seleção e edição das imagens de autoria própria.

 

A comida carrega histórias. Não apenas porque sacia o corpo, mas porque molda identidades, sela pactos, delimita territórios e traduz cosmovisões. No Brasil, a cultura alimentar é reflexo da própria formação social: mestiça, contraditória, marcada por violência, resistência e reinvenção. Identificá-la, reconhecê-la e preservá-la é mais do que um gesto de valorização cultural, é um ato político de memória, disputa e (re)existência.


Dentre os muitos pratos que integram essa cartografia da brasilidade, a feijoada ocupa lugar de destaque. Reivindicada ora como símbolo da cozinha nacional, ora como herança afro-brasileira, a feijoada, assim como o próprio Brasil, escapa a definições simplificadas. Sua origem é múltipla, sua trajetória atravessa camadas históricas e suas significações disputam lugar entre o folclore, o mercado e a ancestralidade.


Ao contrário da narrativa popular que a localiza nas senzalas como um amálgama de sobras e sobrevivência, a feijoada, segundo Cascudo (2007) e outros estudiosos, é fruto de um processo híbrido: herdeira dos cozidos europeus, dos saberes indígenas sobre o feijão-preto e das experiências de adaptação e criatividade das populações negras escravizadas.

 

O relato etnográfico de Tschudi (1857) e os registros de Saint-Hilaire mostram que o feijão com carne fazia parte da alimentação tanto dos escravizados quanto das elites, com suas distinções marcadas pela desigualdade estrutural do país.
 

Mais do que prato típico, a feijoada é um campo simbólico de disputas narrativas e ressignificações políticas. Pode ser definida comida-oferenda, mercadoria gourmetizada ou símbolo de resistência. É a memória encarnada, como propõe Leda Maria Martins, que se atualiza no corpo, no gesto e no rito. Cada preparo é uma cena que reinscreve a história não contada, a história que se cozinha.


Para esse trabalho, a dimensão sacra que interessa que nos aqui. No terreiro onde esta pesquisa se ancora, Ogum é o patrono e o centro. Senhor do ferro, da forja e dos caminhos, Ogum não é apenas símbolo de luta, mas arquiteto do mundo. Ele abre as estradas, forja os instrumentos, comanda o fazer. Seu alimento precisa carregar densidade: deve sustentar o corpo em luta e reforçar o vínculo com a ancestralidade. A feijoada, densa, robusta, feita de carne e tempo, assume esse papel. É comida de Ogum porque, como ele, é força transformadora.


Ofertar feijoada a Ogum não é apenas gesto de devoção, trata-se de gesto político e cosmológico. Ela é elaborada com critério, preparada com reza e oferecida com rigor. Exu, como sempre, é o primeiro a comer, porque nada se move sem sua mediação. Senhor das encruzilhadas, guardião das passagens, Exu é também o que permite que Ogum chegue. A comida, nesse cenário, é operador simbólico que alimenta e conecta e reordena.
 

A mitologia que liga Ogum e Exu, reforça esse equilíbrio entre astúcia e estrutura, entre movimento e direção. Ogum, com sua espada, abre caminhos. Exu, com sua esperteza, multiplica possibilidades. Ambos regem a dinâmica da cozinha de santo: espaço de ordem e improviso, de rigor e criatividade, de controle e encantamento.


Nesse contexto, a cozinha do terreiro extrapola sua configuração doméstica, tornando-se palco de performances cotidianas que articulam memória, identidade e pertencimento. É justamente aqui os saberes afro-brasileiros são inscritos e, portanto, seguem sendo praticados, atualizados pela prática e pela partilha.


Entender a feijoada como comida sacra é, portanto, reconhecer seu papel como tecnologia ancestral. Um prato que além de nutrir, convoca a comunidade. Quando servida na roda, em dia de festa, depois do toque, das rezas e dos cantos, a feijoada se torna gesto de continuidade coletiva. E, ao ser compartilhada, a feijoada de Ogum reforça os vínculos da comunidade, se fazendo arquivo comestível que preserva, pela oralidade e pelo sabor, a história pulsante dos presentes.


Mas a potência da cozinha de santo não se sustenta sozinha. Ela se ergue sobre uma base concreta de solidariedade, reciprocidade e organização coletiva. Os terreiros, como comunidades vivas e em constante reinvenção, operam segundo uma lógica de economia comunitária: uma forma de fazer circular recursos, saberes e afetos de modo não hierárquico, não excludente e profundamente vinculado ao cuidado com o coletivo e com o sagrado.


Manter acesa a chama do fogão de um terreiro e todo o sistema simbólico, espiritual e comunitário que ela sustenta é uma tarefa de mobilização cotidiana. E é no vaivém dos filhos e filhas de santo, que se revezam no corte dos legumes, nos mutirões de limpeza e no preparo da comida, que o fogo continua a arder. São os vizinhos que chegam com doações de ingredientes, os parentes que emprestam panelas, os amigos que se dispõem a buscar ou entregar o que falta. Mas esse ciclo de partilhas não se encerra nos limites da casa, muito pelo contrário, pode e precisa se expandir. Nesse sentido, acredito que os agricultores familiares, as feiras locais e os Centros de Vivência Agroecológica (CEVAE) são parte fundamental de uma rede possível e urgente de abastecimento ético e solidário, que fortaleceria não só a segurança alimentar do Terreiro, mas também na consolidação dos territórios de resistência que ele alimenta.

Agricultores de pequeno porte, feirantes de bairro, hortas comunitárias, CEVAEs e até mesmo os próprios filhos e filhas da casa, em articulação, podem garantir o acesso a insumos de qualidade, com preço justo e, sobretudo, com respeito à natureza e ao sagrado. Quando os alimentos ofertados ao Orixá vêm dessas mãos, eles carregam mais do que nutrientes: carregam vínculo, ética e território.

Escolher fornecedores comprometidos com a agroecologia e com os ritmos da terra não é apenas uma opção consciente, mas uma reafirmação de princípios ancestrais. Como nos lembra Antônio Bispo dos Santos, “A terra dá, mas a terra quer”. Respeitar essa reciprocidade é também resistir à lógica extrativista das grandes redes varejistas, que invisibilizam os sujeitos do campo, encarecem os alimentos e dessacralizam os processos.

Essa rede de trocas entre terreiro, campo e cidade configura o que podemos chamar de um ecossistema insurgente de cuidado. Um circuito vivo que reativa economias periféricas, valoriza o trabalho ancestral e reafirma o alimento como elo entre o material e o espiritual. Nele, a doação se faz política, a compra vira compromisso, e o preparo se transforma em gesto de partilha.

Foi movida por essa inquietação e também pelo desejo de conciliar uma lógica comunitária com a sustentabilidade econômica da produção, que organizei o orçamento da tradicional Feijoada de Ogum, realizada pelo Terreiro Casa de Ogum e Seara do Mestre Sibamba.

A planilha a seguir se refere ao preparo de alimentos para cerca de 600 pessoas. A análise revelou que o arranjo mais viável seria a integração entre insumos adquiridos em supermercados (como o feijão preto e a farofa) e produtos oriundos de práticas agroecológicas (como o tomate, a cebola e a couve). Essa composição, ainda que híbrida, permite manter a oferta em grande escala sem abrir mão de vínculos éticos, cosmológicos e territoriais. A tabela a seguir detalha essa construção:

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