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COZINHA DE SANTO

 

(...) sempre fui atravessada pelas memórias da cozinha: a cozinha de minha bisavó, o forno de cupinzeiro assando o cubu, o fogão à lenha cozinhando o milho; a cozinha de minha avó, as panelas de tropeiro e os porcos assando no forno; a cozinha de minha tia, a couve na panela de ferro, a conversa na beira da janela; a cozinha de minha mãe, o feijão na panela de pedra, o angú transbordando no fogão (...)

Logo quando pisei no chão do Terreiro, percebi que a cozinha dalí também contava (com) memórias: memórias ancestrais... individuais... coletivas…memórias essas que ecoam um processo profundo de pertencimento territorial dentro do espaço urbano onde está inserida. 

Quando entramos no  Casa de Pai Ogum e Seara do Mestre Sibamba, é preciso caminhar cerca de dez metros até alcançar a entrada da assistência. Nesse percurso, o corpo já é atravessado por signos. As plantas de poder (dispostas em vasos, como sentinelas) anunciam que este espaço não se inicia no Congá, mas no caminho. Comigo-ninguém-pode, espada de Iansã, espada de Ogum, alecrim, arruda, guiné, boldo, hibisco, hortelã: plantas cultivadas em vasos, porque a terra não está livre, há concreto.

À direita, um corredor estreito: o Cruzeiro com os assentamentos dos vovôs; a Tronqueira dos filhos; os banheiros. Uma circulação pensada, mas condicionada pelos limites do lote urbano. A escadaria, encostada ao muro da divisa, desce como quem acessa um nível mais profundo da casa. E é lá, nesse fundo de fundo, que está a cozinha.

A posição da cozinha, na retaguarda do lote, revela muito mais do que funcionalidade, expressa uma concepção arquitetônica marcada por camadas de proteção. A distância da entrada evidencia sua centralidade velada. A cozinha é o lugar onde o axé é materializado, mas também é o espaço mais distante da vista de quem chega. É o ventre da casa (ventre que a estrutura arquitetônica empurra para os fundos).

Essa configuração espacial é um reflexo dos modos como o sagrado e o trabalho, especialmente o trabalho feminino e coletivo, são organizados e ocultados no contexto urbano. A cozinha, ainda que central para a manutenção espiritual do Terreiro, ocupa um espaço lateralizado. Não por desimportância, mas talvez por uma herança de estruturas sociais que exijam o recolhimento e a proteção das tradições. Essa ambivalência convida à crítica:

Por que o lugar mais sagrado é também o mais afastado? O que diz a cidade sobre os corpos que alimentam o axé?

A comida sustenta o axé, alimenta os guias, fortalece a corrente, firma o corpo para o transe. E, ainda assim, a cozinha é frequentemente pensada como "suporte", nunca como "centro". Essa marginalização espacial reflete não apenas uma escolha simbólica, mas também a persistência de estruturas raciais e de gênero que moldam o território de forma desigual, relegando o trabalho do cuidado e da alimentação à invisibilidade.

Mas é justamente nesse lugar: entre o fogo que cozinha e a palavra que reza, que a cozinha de um Terreiro se afirma como território político. Cada alimento preparado ali é mais que sustento para o corpo: é a reafirmação de um modo de existir que recusa o apagamento colonial e capitalista.

Se para Milton Santos o espaço é sempre uma construção social e histórica, onde se travam lutas silenciosas e cotidianas, a cozinha dentro do terreiro é justamente o palco onde resistências profundas são cultivadas: resistência à fome, ao esquecimento, à desterritorialização, ao racismo estrutural e religioso, à subjugação.

Ao me deixar atravessar pela cozinha e observá-la como espaço de produção política, reconheço que nela existem gestos de autonomia, redes de solidariedade, práticas de reencantamento do mundo. No toque da colher de pau, no cheiro da folha macerada, no gesto de dividir o alimento consagrado, reafirma-se um projeto radical de existência negra e indígena que atravessa a violência colonial e sobrevive pela mandinga, pela fé e pela inteligência coletiva.

Assim, este trabalho propõe compreender a cozinha de terreiro como um território de insurgência e criação, onde o espaço cotidiano se converte em espaço político, e o alimento sagrado se transforma em ferramenta de (re)existência.

 

"Como o coração de um terreiro que pulsa nutrido pela constante irrigação sanguínea do entra e sai e das relações que ali acontecem, o espaço da cozinha se mostra notável e essencial em qualquer território de candomblé. O alimento nessa cosmogonia, assume a mais completa importância, por ser o principal mantenedor energético e símbolo que conecta o indivíduo aos deuses pela lógica energética do Axé."

Angèle Leandro Diéne

A autora Taís de Sant'Anna Machado, em sua tese de doutorado “Um pé na cozinha”, revela que o trabalho das cozinheiras negras no Brasil foi muito além da imposição colonial. A autora analisa a cozinha como espaço de resistência negra, onde o trabalho das mulheres negras é fundamental na construção de saberes, economias e afetos no Brasil pós-colonial. Ela mostra que, mesmo diante da marginalização, a cozinha, que no imaginário colonial foi relegada ao espaço da servidão e da invisibilidade, transforma-se, sob a ação das mulheres negras, em território insurgente.


E é interessante entendermos que dentro da cozinha de santo essa dimensão se amplifica, pois trata-se de um espaço comunitário, central para a manutenção do axé, para a circulação do tempo não linear, para a renovação dos vínculos humanos e espirituais. Cada alimento preparado, cada saber transmitido entre gerações, cada feitiço partilhado na cozinha, é ato de recriação do mundo. Um mundo que se recusa a ser apagado pela lógica colonial.


Essa noção de tempo não linear é trabalhada pela professora Leda Maria Martins, em "A performace do tempo espiralar”, onde ela disserta sobre a genuinidade da produção semiótica nas tradições afro-indígenas brasileiras, uma vez que elas se constituem em uma lógica espiralar do tempo, que abandona a linearidade imposta pelo tempo eurocristão, porque se entende como parte integrante das encruzilhadas e, como tal, o próprio movimento. Esse tempo espiralar se move em círculos, em repetições criativas, onde passado, presente e futuro se entrelaçam. Cada ação, cada ritual, cada mandinga, é uma ativação da memória viva dos ancestrais e uma reinscrição da história no agora, tecendo o futuro na passagem entre o visível e o invisível.


Essa semiótica está para a cozinha do terreiro, tal qual a cozinha do terreiro está para a produção das dinâmicas culturais nas comunidades em que estão inseridas, sendo palco para os corpos que se movimentam em direções distintas do que é delimitado pelo pensamento hegemônico branco; nesse espaço coletivo, existe a liberdade para acessar inúmeros arranjos e rearranjos de saberes e, consequentemente, de realidades possíveis. 


Nesse sentido, a cozinha de terreiro não apenas preserva técnicas culinárias, ela age como um espaço-corpo-território de produção de mundos, onde a comida ritualística, a prática agroecológica e a (re)existência espiritual operam como tecnologias anticoloniais de afirmação da vida: ela faz parte de um contexto de resiliência e transgressão, tal como dito por Luiz Rufino, em “Pedagogia das Encruzilhadas”:
 

"Assim escrevo: resiliência = reconstrução tática a partir dos cacos despedaçados pela violência colonial; transgressão = invenção de novos seres para além do cárcere racial, do desvio e das injustiças cognitivas."

Luiz Rufino

Nesse cenário, o alimento sagrado também emerge como performance do tempo espiralar. Cada preparo, cada oferenda, cada partilha reinscreve no presente os caminhos trilhados pelos ancestrais, sem repetir o passado de forma linear, mas reatualizando-o como forma de vida mutante. 

Na cozinha do terreiro, o tempo gira, cruza, volta, avança (uma dança de tempos cruzados). O feijão preto oferecido a Ogum é ao mesmo tempo tradição e criação. Essa temporalidade espiralar fortalece a cosmovisão de que o território é dinâmico e continuamente refeito pelos gestos, cantos, rezas e comidas que ali se dão. Assim, o alimento conecta os vivos, os ancestrais e o sagrado, tudo ao mesmo tempo, numa espiral contínua.

 

No terreiro, o fogão nunca esfria.

O som da panela evoca Deuses.

A comida se faz oração.

E quem cozinha,

dança a dança circular do tempo.

Dentro desse pensamento, onde os corpos visíveis e invisíveis se movem juntos, o corpo de quem cozinha e de quem come é, portanto, tela viva: um espaço orgânico onde os saberes ancestrais se inscrevem, se narram, dançam, reescrevendo, continuamente, as tradições. Segundo Leda, podemos dizer que o preparo do alimento nos terreiros (seus segredos, seus gestos, suas alquimias) constitue o que podemos chamar de oralitura gastronômica, que mantém a memória coletiva pulsante.

 

Aqui, a oralitura se manifesta:
Se aprende com o corpo.
Com o gesto.
Com o cheiro.
Com o tempo do silêncio.
Com a pausa da respiração.

Quando se cozinha para uma gira ou para uma festa de Orixá, não se está apenas repetindo um costume: está se recriando a história. O tempo não é passado, é presente ritualizado (na execução da receita, no corte das ervas, na defumação da cozinha); é memória ativa (ao repetir gestos que os ancestrais ensinaram); é projeção de futuro (ao nutrir novos filhos de santo, novas gerações que manterão viva a tradição). Cada FEIJOADA DE OGUM, acarajé, amalá ou canjica é um ato político (silencioso, mas potente) de sobrevivência, identidade e celebração.

"O corpo é tela e texto, é espaço de inscrição e reescritura da memória ancestral."

Leda Maria Martins

ACERVO pessoal,
edição autoral

 

Os deuses africanos cruzaram o Atlântico em tumbeiros junto com os negros expatriados em direção às Américas, formados por uma variedade étnica, racial e cosmológica. As etnias africanas que aqui chegaram podem ser divididas entre os sudaneses e os Bantus: os sudaneses eram uma comunidade originária da África Ocidental (atual Nigéria, Benin e Togo) que abrangia os Iorubas ou Nagôs (subdivididos em queto, ijexá e igbá), os jejes (ewe e fon), os fanti ashantis, os haussás, os tapas, os peuls, os fulas e os mandingas. Esse grupo concentrou-se nas regiões açucareiras da Bahia e Pernambuco e suas influências deram origem a religiões como o Candomblé e o Tambor de Mina.


Os Bantus, por sua vez, representam a maioria dos chegados ao Brasil, eram negros que vinham da região conhecida como África Central, território que abrange hoje países como Congo, Angola e Moçambique, e que representavam etnias como os caçanjes, bengalas, angola, dentre outras. Em termos ancestrais, a Umbanda está muito mais próxima às tradições do povo Bantu, tal qual a adoração e culto aos seus mortos. 


Nego Bispo, no ensaio “Somos da Terra”, analisa esse processo de diáspora e como a cosmologia dos povos que cruzaram o Atlântico permanece viva, para isso ele trabalha com os conceitos de “confluência” e “transfluência”. Confluência é um conceito nascido pela observação do movimento das águas pelos rios, pela terra. Transfluência nasce da observação do movimento das águas pelo céu. O filósofo percebeu que, pelas chuvas e pelas nuvens (pelos rios dos céus), um rio que está no Brasil conflui com um rio que está na África: 

"Então, se é possível que as águas doces que estão no Brasil cheguem à África pelo céu, também pelo céu a sabedoria do nosso povo pode chegar até nós no Brasil."

Antônio Bispo dos Santos

Entre as “confluências” que chegam dos céus, está o “pensamento Bantu”, trabalhado pelo congolês Bunseki Fu-Kiau em “O livro africano sem nome: Cosmologia dos Bantu-Kongo”.  Fu-Kiau revela que os pensamentos dos povos bakongo e bantu são caracterizados por uma visão não linear do tempo, pela centralidade da energia vital (ntú/kîkîla) e pela compreensão da vida como movimento circular entre nascimento, maturação, morte e ancestralização.


Fu-Kiau afirma que esses saberes foram reorganizados, ressignificados e recriados nas Américas (nos terreiros, nas roças, nas cozinhas, nas rodas) resistindo à fragmentação colonial e alimentando a construção de espiritualidades afro-diaspóricas vivas, como a Umbanda, o Candomblé de Angola, a Quimbanda, entre outras.


Quando compreendemos essa dimensão circular (e, portanto, contínua) da cultural afro-indígena brasileira, atravessada pelos pensamentos bakongo e bantu, compreendemos também que não se trata de resistência cultural passiva, visto que ela reafirma sua existência pelo movimento constante de (re)territorialização e da (re)interpretação da vida. Ela não se solidifica em tradição morta, muito pelo contrário, ela se movimenta, absorve e (re)cria.

E nesse sentido, cada padê, cada canjica, cada feijão preto é uma renovação do pacto de honra ancestral. Na cosmologia bakongo e bantu, além dos rituais, o território também é sagrado, a terra é mãe e casa, o corpo é extensão da terra e a alimentação é ato espiritual. Os terreiros, ao manterem práticas como as comidas de santo e a cozinha efervescente, estão reafirmando sua autonomia frente às violências do colonialismo, da monocultura e da racionalização ocidental (do tempo e do espaço). E, nesse sentido, Nego Bispo afirma que:

"Os quilombos são perseguidos exatamente porque oferecem uma possibilidade de viver diferente. Não é por conta da cor da nossa pele. Nos documentos da Igreja que eu avaliei, as autorizações e as permissões para que povos fossem escravizados não dizem a cor da pele desses povos, dizem a religiosidade. A bula de 1455 do Papa Nicolau V diz que quem deve ser escravizado são os pagãos e os sarracenos. Ela não diz que é preto, nem branco, nem indígena. São os pagãos. São os povos que têm uma cosmologia. Que povos são esses? São povos que continuam comendo dos frutos das árvores. São povos que não obedeceram à orientação do deus eurocristão. São povos que não sentem obrigação de trabalhar. São povos que não precisam comer com a fadiga do suor, porque a natureza já oferta a comida."

Antônio Bispo dos Santos

A cozinha de Terreiro representa o resquício desse modo de vida não colonial, desconectado do tempo da produção e portanto, pode ser tratado, segundo Milton Santos, como um espaço banido, ou seja, um território marginalizado pela lógica do capital, mas que resiste criando novas formas de vida e sociabilidade, tal como favelas e quilombos. 


Se olharmos a cozinha do Terreiro por essa lente, vemos que, de fato, não se trata de espaço mercadológico, não cabe à ele uma lógica de consumo acelerado e, portanto, não atende à produtividade capitalista. E aqui, me retomo à uma conversa que tive em 18 de novembro de 2023, com o malandro Zé Pilintra das Almas, que disse “menina, é necessário o tempo do ócio, o tempo de amar, de rir e comer com bons amigos; é preciso cultuar o tempo de viver”. Vejo a cozinha justamente como esse espaço de contemplação e (re)existência, onde o tempo é voltado para a produção e para o consumo comunitário-espiritual, onde os saberes revisitam as tradições afro-indígenas e a relação com a natureza é (ou pelo menos deveria ser) orgânica. 


Fu-Kiau conta um pouco sobre a relação do povo Bantu com produção e o consumo comunitário: para eles é um crime possuir propriedade que valha mais do que o padrão de bens dos membros da própria comunidade, pois compreendem que tal propriedade não poderia ter sido obtida por meios honestos, sem tomar o rumo da exploração da comunidade e dos seus membros. 

"Mu kânda 
Dentro da comunidade 
Ka mukadi mputu
Não há espaço para a pobreza
Mu kânda

Dentro da comunidade
Ka mukadi mvwâma
Não há espaço para riqueza mal adquirida 
Mu kâmda

Dentro da comunidade  
Ka mukadi mpofo
Não há espaço para “dador de ordens”
K mukadi n’nânga
Não há espaço para escravizados
Babo mfumu na mfumu
Todos são mestres e somente mestres
Babo ngânga na ngânga 
Todos são especialistas e somente especialistas
Mu kânda

Dentro da comunidade
Bilesi 
Gerações jovens
Mu kânda 

Dentro da comunidade
Mwâna mfumu 
Filhos dos ancestrais 

Mu kânda
Dentro da comunidade
Busi/nsâng’a kânda 
Uma irmã, o rebento da comunidade
Mu kânda

Dentro da comunidade
Nkasi a kânda
Um irmão, o futuro líder
Mu kânda

Dentro da comunidade
Kinenga ye debede

Equilíbrio e igualdade
Mu kânda
Dentro da comunidade 
Kingenga/kimpambudi mwânana
Não há espaço para separatismo/privacidade 
Mu kânda

Dentro da comunidade
Sèkila kumosi
Todos dormem de uma só vez
Mu kânda

Dentro da comunidade
Sikamana kumosi
Todos acordam de uma só vez
Mu kânda

Dentro da comunidade
Mbèni ku mbazi 
Inimigos se destacam."

Fu-Kiau

Essa perspectiva coletiva da produção do espaço potencializa a discussão sobre o terreiro e sua cozinha como sendo territórios espiraladamente vivenciados e performados. Em "A terra dá, a terra quer", Nego Bispo afirma que o território não é apenas o solo, mas todo o espaço onde a cultura se reinventa, se mantém e se transmite.


Assim como o quilombo se constrói com autonomia e memória, a cozinha-ritual também preserva modos de preparo, resiste à política de apagamento dos saberes alimentícios afro-brasileiros, e ativa, no presente, o pacto político entre corpo, alimento e espiritualidade. A cozinha de um terreiro, nesse sentido, é um território simbólico de saber ancestral, tão importante quanto a mata, a cachoeira, a roça.

"A ancestralidade é a vida enquanto possibilidade, de modo que ser vivo é estar em condição de encante, de pujança, de reivindicação da presença como algo credível."

Luiz Rufino

A urbanização colonialista tenta romper esse vínculo ao desapropriar/roubar territórios negros, indígenas e camponeses, ao destruir práticas tradicionais de plantio, ao impor a lógica da cidade/mercadoria como "único" modo de vida possível. Nos Terreiros de Umbanda, mesmo dentro das cidades, práticas de plantio de ervas, alimentos e oferendas resgatam microterritórios de autonomia e cura. No meio do concreto e do asfalto, a comida ritualística resgata o tempo e a memória ancestral e reafirma a sacralidade da terra/território. Ouso dizer que dentro da cozinha:

 

Há um tempo que não corre em linha reta.
Ele rodopia. Ele canta. 
Memória viva que vibra no corpo que gira
Mas onde gira esse corpo?
Na cozinha da Mãe de Santo

No terreiro que resiste ao asfato da cidade: território combativo
E o chão: o chão também sonha
A terra respira, sente e sofre. 
Juntos, resistimos, reexistimos e reencantamos.
Cada passo nosso, no nosso chão, é uma realidade insurgente:
Transfluindo somos começo, meio e começo.

A cozinha de Terreiro carrega uma construção transgeracional que pode ser observada quando Nego Bispo fala, por exemplo, sobre as cozinhas dentro do território do quilombo. O filósofo conta que a cozinha é o melhor na arquitetura quilombola, o mais necessário e o mais bem cuidado, porque a arquitetura também é pensada em função da comida: a comida organiza a festa, organiza a recepção, tudo se organiza em torno da comida. E não é diferente dentro de uma casa de Axé, a comida para nós é parte essencial, porque ela alimenta tudo aquilo que somos e cremos.

A cozinha nos constitui, assim como constitui e sustenta a nossa relação com o sagrado. Na cozinha cada um traz o que tem e o que pode, e sempre se torna o suficiente para todos, porque nunca lidamos com a comida de forma mesquinha: o que é de um, é de todos e o que é de todos, é fruto do sagrado. 
Para aprofundar essa discussão da cozinha como espaço de reafirmação política, precisamos vê-la em sua totalidade: como território de produção de existência.

 

O sistema dominante separa a produção de vida em espaços fragmentados para neutralizar a força do coletivo. Mas a cozinha de um Terreiro é muito mais que um espaço de fazer comida, trata-se de um espaço de manter memórias (e desejos) de mundos múltiplos, possíveis e invisibilizados. Quando falo da cozinha enquanto território político, estou dizendo que tem saber na panela, tem ciência no preparo do alimento. Isso é o que eu chamo de tecnologia ancestral – aquela que foi plantada, regada e colhida no chão da comunidade. 

"Somos povos de trajetória, não somos povos de teoria. Somos da circularidade: começo, meio e começo. As nossas vidas não têm fim. A geração avó é o começo, a geração mãe é o meio e a geração neta é o começo de novo." 


Antônio Bispo dos Santos

​Essa ideia de “tecnologia ancestral” dialoga bem com as ideias do autor chinês Yuk Hui, no livro "Tecnodiversidade", porque é possível perceber que os saberes contidos no preparo do alimento expressam a resistência contra a universalização de uma única racionalidade tecnológica, aquela imposta pela modernidade ocidental e pelo capitalismo global. Hui propõe a valorização de cosmologias diversas que possam gerar tecnologias enraizadas em modos de vida locais, de modo a restaurar a pluralidade das existências humanas (e não humanas).

 
A gira que acontece na cozinha de santo é, nesse sentido, um exemplo vivo de “tecnodiversidade”, uma vez que ela instaura um modo distinto de organizar o espaço-tempo, onde o saber não se dissocia da corporeidade, da espiritualidade, da coletividade e, sobretudo, da ancestralidade. Para Yuk Hui, toda tecnologia é expressão de uma cosmologia e, nesse sentido, não existem "tecnologias neutras", mas articulações culturais e políticas que moldam o fazer técnico. E o autor explica ao longo da sua obra que não se trata de recuperar um passado "primitivo", mas de afirmar que há múltiplas formas legítimas de pensar e fazer técnica, ciência e cultura, que se tornam fundamentais para sustentar tecnologias de futuro.

Quando falo a respeito de tecnologia de futuro, não estou me referindo à aceleração do progresso técnico, mas à construção de modos de produção enraizados em outras temporalidades (menos extrativistas e mais relacionais). Trata-se de tecnologias construídas na lida com o tempo e com a terra, ancoradas em saberes ancestrais que rejeitam a lógica da escassez, do lucro e da separação entre natureza e espírito. No contexto da cozinha de santo, esses saberes não se aplicam apenas ao preparo do alimento, mas também à sua origem: ao plantio orientado pelas fases da lua, ao tempo da colheita, ao respeito aos ciclos da natureza e às forças encantadas que habitam o alimento.

"Tão dinâmico na ação biológica e convencional de comer é o conceito de comer no âmbito das religiões afro-brasileiras. Comer equivale a viver, a manter, a ter, a preservar, a iniciar, a comunicar, a reforçar memórias individuais e coletivas. Assim, fundada nesse princípio, a vida é a grande celebração realizada entre os homens e seus deuses. Isso se dará preferencialmente por meio da comida. Isso se dará na compreensão diversa e complexa do ato de comer, quando tudo come, até o homem."


Raul Lody

ACERVO pessoal,
edição autoral

 

Cada folha colhida, cada raiz lavada, cada preparo ritual não é apenas um gesto culinário: é uma operação cosmopolítica. É uma atualização viva de tecnologias de mundo que articulam espiritualidade, território e sobrevivência. Falar da cozinha de santo, portanto, é falar também de soberania alimentar, de agroecologia, de práticas ancestrais de cuidado e resistência que confrontam diretamente os modelos industriais e coloniais que ainda estruturam os sistemas alimentares urbanos.


No Terreiro, o alimento ritual não é adereço, é fundamento. É o elo entre o corpo, o sagrado e a terra. Discutir segurança alimentar nas cozinhas de axé é, portanto, reconhecer que se trata de uma luta por soberania espiritual, territorial e epistêmica. Isso implica, antes de tudo:

  1. garantir acesso contínuo a insumos fundamentais como folhas, grãos, temperos e ingredientes específicos, frequentemente ameaçados por políticas urbanas que cercam os saberes verdes através do desmatamento, do uso intensivo de agrotóxicos ou do controle das sementes;

  2. assegurar a permanência territorial dos terreiros, ameaçados por processos de expulsão, especulação imobiliária e racismo ambiental que silenciam espaços de ancestralidade;

  3. preservar os tempos próprios da liturgia alimentar, incompatíveis com a lógica da pressa e da industrialização: comida de santo não se prepara com micro-ondas nem com produto empacotado. Ela exige silêncio, folha orada e fogo que gira devagar.


Em outras palavras: sem autonomia alimentar, não há autonomia litúrgica. Negar às casas de axé o direito à segurança alimentar é também negar sua potência ritual, sua soberania cosmológica, sua própria existência como território político. Nego Bispo amplia e radicaliza essa compreensão em "A terra dá, a terra quer", ao afirmar que não basta consumir alimentos sem veneno. A segurança alimentar, para ser de fato orgânica, precisa emergir de uma lógica coletiva, ancestral e desmercantilizada. Trata-se de construir uma economia do comum, uma economia orgânica, no sentido relacional, territorial e circular, onde todas as vidas possam acessar e partilhar o alimento como bem essencial.

"Ora, isso que compra no supermercado com selo de ‘orgânico’ é um produto, às vezes sem veneno, mas não é algo orgânico. Não é produzido pelo saber orgânico, não é voltado para a vida. Se um quilo de carne orgânica é muito caro, o pobre não pode comprar; e se o pobre não pode comprar, não é orgânico. Orgânico é aquilo que todas as vidas podem acessar. O que as vidas não podem acessar não é orgânico, é mercadoria - com ou sem veneno."

Antônio Bispo dos Santos

Aplicado às cozinhas de santo, esse pensamento revela uma questão central: o alimento ritual não pode estar submetido às mesmas dinâmicas de escassez, desigualdade e exclusão que regem o sistema alimentar hegemônico.

O que se prepara na cozinha do axé não é apenas uma oferenda espiritual: é também um gesto de autonomia radical frente às lógicas que negam o direito ao território, ao cultivo digno e ao tempo necessário para preparar com respeito.


Assim, segurança alimentar, tecnodiversidade e liturgia se entrelaçam. São expressões diferentes de um mesmo compromisso com a sustentação de mundos plurais e possíveis. Mundos que a colonialidade tentou apagar, mas que seguem sendo cultivados no calor da panela, na partilha do alimento, na gira do corpo.


Essa discussão nos convoca, portanto, a um deslocamento epistemológico: pensar segurança alimentar em casas de axé exige ultrapassar a lógica nutricional-instrumental, centrada em métricas biomédicas e políticas universalizantes de acesso e adentrar uma perspectiva cosmopolítica, ancestral e situada. Nas cozinhas de santo, o alimento não é abstração: ele é corpo, território e axé. Ele carrega linhagem, ritual, e memória. É tecnologia espiritual e política de reexistência afro-indígena.


E, dentro dessa lógica, os alimentos não são objetos neutros: são entidades. São portadores de força vital, são extensões dos Orixás. Não há utilitarismo. Plantar um quiabo para Xangô ou um inhame para Ogum é muito mais que produzir comida, é performar uma tecnologia de vínculo, uma coreografia ancestral entre corpos, saberes e forças invisíveis. É exatamente nesse ponto que a agroecologia se entrelaça com a cosmologia do axé.


Integrar agroecologia e cozinha de santo é propor uma ruptura com a colonialidade alimentar e uma abertura para formas de habitar o mundo que afirmam a vida em sua complexidade. Plantar, colher e cozinhar com respeito é um jeito de adiar o fim do mundo (ou, como propõe este trabalho, talvez cozinhar o mundo novo - de novo). Não é à toa que muitos alimentos são oferecidos antes de serem consumidos: primeiro se dá aos encantados, primeiro se agradece, primeiro se consagra. O alimento preparado com magia, com pajelança e com técnica ancestral é a ponte entre mundos. Como diz minha mãe de santo: 

"Primeiro damos o que há de melhor ao Santo, depois comemos. "


Mãe Rosi DiOgum

Nego Bispo reforça essa ética ao lembrar que o alimento é também um modo de se relacionar com o território, com a coletividade e com o encantado. Na Umbanda, o alimento ritualizado é mediação e quem cozinha, ao fazê-lo, reafirma com o corpo essa ligação com a terra e com os invisíveis. Cozinhar, nesse contexto, é um gesto de humildade, técnica e de escuta.

"A liberdade dos povos começa no modo como eles plantam, colhem, preparam e partilham seus alimentos."
 

Antônio Bispo dos Santos

Na lógica agroecológica, a terra não é mercadoria, nem um simples recurso a ser explorado. Ela é mãe, é força espiritual. Cultiva-se não apenas para colher, mas para renovar alianças com os ciclos da natureza e com os encantados. Nesse modo de ver e viver o mundo, não há separação entre território e vida. Essa compreensão não apenas dialoga com a cozinha de santo, mas ela constitui, de forma profunda, a base ontológica do próprio terreiro. A terra é fundamento. É onde vivem os orixás, é onde se firmam os pés e se assentam os rituais. É o chão de axé, de reza e de reexistência. Quando os alimentos utilizados nos rituais são cultivados de forma agroecológica, três forças se reativam:

  • o alimento carrega maior força vital, pois não foi violentado por venenos ou extrações coloniais;

  • respeita os espíritos da natureza, sem agredir o solo, as águas ou os ventos;

  • potencializa o axé do gesto ritual, pois tudo aquilo que é cultivado com dignidade e ofertado com respeito aprofunda a aliança com o sagrado.

 

Essa leitura não é restrita ao espaço da cozinha de santo, ela é ampliada, e ganha novas camadas, quando convocamos experiências urbanas que partilham com os terreiros a reinvenção do mundo a partir do chão, da coletividade e da sabedoria ancestral. É nesse horizonte que os Centros de Vivência Agroecológica (CEVAEs) espalhados por Belo Horizonte, devem ser aqui incorporados à discussão.

Implantados em territórios periféricos, os CEVAEs operam como zonas de reexistência agro-espiritual: espaços comunitários de cultivo, aprendizado, cuidado e partilha, onde a agroecologia se manifesta como prática cotidiana de resistência e de fabulação coletiva. Inclusive, há um CEVAE a menos de 4 km do Terreiro de Pai Ogum, uma proximidade que não é apenas geográfica, mas cosmopolítica. Assim como as cozinhas de santo, esses espaços recusam a monocultura da vida (da comida, do pensamento, da cidade) e afirmam uma tecnodiversidade viva, sensível aos ciclos da terra, à oralidade dos mais velhos e à reciprocidade como fundamento do mundo.Se no terreiro se cozinha com axé, no CEVAE se planta com encantamento. Ambos constituem pedagogias insurgentes. Práticas educativas que escapam à lógica escolar colonial e se realizam na gira do corpo, da enxada, da folha, da colher de pau, do tempo espiralar.

 

São arquiteturas do chão, que não se erguem com concreto ou linhas retas, mas com vínculos, ancestralidade e afeto. Incluir os Centros de Vivência Agroecológica nesta discussão é ampliar o campo de visibilidade das insurgências silenciosas que reinventam a cidade desde suas bordas. São práticas que compõem uma cartografia subterrânea, feita de terreiros, hortas populares, quintais medicinais, fogões a lenha e vasos de tempero cultivados em apartamentos. Uma cartografia viva que reposiciona a cidade não como projeto técnico ou desenho racional, mas como corpo em disputa, tecido por redes de cuidado, luta e reinvenção coletiva.

​​

Essa disputa, por modos de viver e de se alimentar, não se encerra no interior do terreiro. Ela atravessa a cozinha de santo, mas também transborda seus muros. Ecoa (ou deveria ecoar) nas casas dos filhos de axé, nos quintais afetivos, nas hortas improvisadas, nos cultivos de varanda. Porque é ali também que se planta o cuidado, que se cozinha com intenção e que se oferece com reverência.

Entre o gesto de plantar e o rito de oferecer, a cozinha de santo atua como mediadora de relações sociais, espirituais e territoriais. Trata-se de um espaço onde a oralidade e as performances do corpo se articulam como formas de transmissão de saberes e manutenção de sistemas simbólicos ancestrais. Nesse contexto, o alimento ultrapassa sua função nutricional: torna-se operador político e cultural, capaz de tensionar fronteiras, rearticular vínculos comunitários e reconfigurar a própria noção de território urbano.


O que se aprende na cozinha, no terreiro ou na roça desdobra-se em formas de viver que tensionam a cidade instituída, criando frestas por onde o sagrado escapa e respira. E ainda que os tempos tenham mudado (e mudaram) os terreiros não estão alheios a esse tempo histórico. São atravessados por ele: pela urbanização acelerada, pelo mercado alimentar, pela lógica do consumo e do descarte. Mas mesmo atravessados, seguem reinventando o tempo: como quem gira, como quem espirala, como quem cultiva o futuro com memória.


Encaminho, assim, o encerramento deste quase parêntese da pesquisa com uma citação do "Dossiê Comida de Santo e Comida de Branco", escrito pelo antropólogo e Babalorixá Vilson Caetano, que nos lembra:
 

"A adoção ou não destes novos modos de preparar a comida dos orixás é um debate que está apenas iniciando dentro das comunidades terreiros, até porque os sacerdotes que vêm adotando essas intervenções pouco falam sobre isso, assim como os que resistem, resguardam-se, omitindo opiniões. Afirmam que “cada terra tem seu dono” ou ainda que “cada pai cria o filho à sua maneira” e sabem que as comidas sacrificiais de seu terreiro constituem um foro íntimo de cada comunidade. Assim, ao mesmo tempo em que informações a respeito de tais comidas podem ser faladas, ditas e sabidas, há o fundamento."


Babalorixá Vilson Caetano

ACERVO pessoal

 

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