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AUTOETNOGRAFIA:
entre o chão e o espelho

 

 

 

"Sendo assim, é nossa responsabilidade assumir a emergência e a credibilização de outros saberes, diretamente comprometidos, agora, com o reposicionamento histórico daqueles que os praticam. Nessa perspectiva, emerge outro senso ético/estético; os saberes que cruzam a esfera do tempo, praticando nas frestas a invenção de um mundo novo, são aqueles que se encarnam na presença dos seres produzidos como outros. Firmemos nossas respostas combatendo a baixa estima que nos foi imposta; a problemática do conhecimento é fundamentalmente étinico-racial.


Luiz Rufino

Minha presença neste chão não é neutra e, por muitas vezes, a dúvida me atravessou como faca: talvez o mais ético fosse recuar. Desistir da caminhada como filha de santo, silenciar meu corpo no aprendizado mediúnico, suspender este trabalho. Havia uma voz, sussurrada pelo peso da minha branquitude, que perguntava: “quem é você aqui?”.


Não é uma dúvida sobre minha fé, é sobre meu lugar. Sobre o risco de ferir e ocupar um espaço que não é meu por direito.

A minha pele me alertava: este corpo, branco, carrega a história dos opressores, que ferem, há séculos, a pureza do axé. E foi preciso tempo para internalizar que não se tratava da cor da pele, mas do compromisso com a minha comunidade e com os meus mais velhos.

 

Foi preciso tempo para internalizar que não se entra num terreiro como quem entra numa sala de aula, mas como quem cruza uma fronteira viva: e se curva. 

 

"Diadi nza-Kongo kandongila: Mono i kadi kia dingo-dingo (kwènda-vutukiasa) kinzungidila ye didi dia ngolo zanzingila. Ngiena, kadi yateka kala ye kalulula ye ngina vutuka kala ye ka-kukuka.

Eis o que a Cosmologia Kongo me ensinou: Eu estou indo-e-voltando sendo em torno do centro das forças vitais. Eu sou porque fui e re-fui antes, de tal modo que serei e re-serei novamente.


Bunseki Fu-Kiau

Reconheço minha branquitude e os marcadores sociais que a acompanham, como parte inseparável do corpo com o qual pesquiso, escrevo e caminho. Assim como reconheço todos os que vieram antes de mim. Reconheço as tradições, as rezas de cura, as mandingas e os rituais.

 

Reconheço o som do atabaque, a melodia do maracá. Reconheço a força e a insubordinação dos meus, que resistiram e resistem (mesmo depois de mortos). Não se trata de ocupar o protagonismo, tampouco de desaparecer na margem. Trata-se de habitar o entre, a travessia, com consciência deslocada e cuidado permanente.
 

Meu compromisso não é com a tradução, mas com o cuidado. Não desejo falar em nome de ninguém, mas a partir das marcas que a convivência me inscreve no corpo e na palavra. Nesse caminho, Nego Bispo alerta sobre o perigo da "tradução compulsória" e é por isso que escolho me deixar atravessar, sabendo que há saberes que não devem ser capturados, mas sim preservados em silêncio.


O chão pelo qual caminho não é um laboratório: é um mundo. E o que apresento aqui não é “o saber dos terreiros”, é uma leitura situada, amorosa e crítica de algo muito maior que eu, mas que também me tem como parte. Não falo por. Falo com. Falo após. Falo do meu lugar: de atravessada e de atravessadora.  

Esse registro foi feito por um dos meus irmãos de santo, Augusto. Encontrei por acaso, enquanto remexia o acervo de imagens do Terreiro.

Não houve pose, nem aviso. Mas ali estava meu corpo.

Nem mais, nem menos... apenas entre.
Girando...

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